Jeanne Moreau: muito mais que a musa da Nouvelle Vague

agosto 01, 2017



Eu estava descobrindo o cinema francês das antigas, a etapa seguinte à minha descoberta do cinema clássico, quando a encontrei. Ela era diferente de tudo o que já tinha visto até aquele momento. Uma beleza nada comum, uma voz rouca por causa do cigarro. Um cigarro na boca, um sorriso irônico. Ela, Jeanne Moreau.

Não há melhor momento do que aquele em que você mergulha fundo na existência de uma pessoa. Foi o que fiz com Jeanne. Eu comecei a assistir um filme atrás do outro. Não tinha tempo para absorvê-los direito, porque queria mais. Mais, mais, mais. Apesar de não refletir muito sobre o que eu estava assistindo, tinha certeza de que estava diante de uma atriz fabulosa, ousada para não dizer o mínimo. Ela aparecia tendo um orgasmo ao som de Brahms e para uma garota como eu, acostumada ao recato dos filmes clássicos norte-americanos, aquilo foi o céu.




Hoje eu sei que aqueles filmes mudaram a minha vida. Eles formaram o meu caráter enquanto cinéfila, mas principalmente como mulher. Jeanne, ainda que timidamente, estava me mostrando que mulheres podiam, sim, ter orgasmos nos filmes. Elas podiam ser donas de seus corpos e seus destinos. Elas podiam escolher. Podiam ter papeis que questionavam todos os padrões.

Depois, é claro, eu parti para a descoberta de sua vida pessoal. Uma existência fascinante quanto a própria Jeanne, como o fato de ela ser a garota mais jovem a entrar para a Comédie Française. Dá para acreditar? Jeanne sempre dizia que caiu no cinema por acaso, e só posso agradecer aos céus por isso. Imagina se seu talento ficasse restrito somente aos palcos? Um senhor desperdício!

Jeanne na época da Comédie Française.

Apesar de ter rodado inúmeros filmes nos anos 50, ao lado de nomes como Jean Gabin, foi somente no final dessa década que ela estreou a película que lhe daria o estrelato dentro e fora da França. Os amantes (Les amants) antecipou a Nouvelle Vague, trazendo uma crítica ácida à burguesia e ao casamento. É neste filme que ela tem um orgasmo ao som de Brahms, uma das cenas mais fantásticas e sensuais do cinema. A maneira como Louis Malle, o diretor do filme, a filmou é de uma sensibilidade absurda. Ele estava perdidamente apaixonado por ela na vida real, e é como se a câmera dele estivesse fazendo amor com ela. É uma cena que povoa meu imaginário até hoje.

Como vocês podem imaginar, houve reações violentas por causa de Os amantes. Aqui no Brasil, por exemplo, o filme foi censurado. Ninguém queria assistir a uma mulher tendo prazer durante quase 20 minutos, especialmente se esse prazer fosse fora do casamento. A partir daí, a imagem de Jeanne na imprensa começou a ser associada a de uma mulher devassa, vagabunda mesmo. Quando o filho dela sofreu um acidente de carro, adivinha quem eles culparam? Ela mesma, oras. Porém, Jeanne não se abalava com essas coisas. Ela seguiu pelos anos 60 afora fazendo inúmeros papéis ousados, seja nos filmes de Orson Welles ou Buñuel.

Um desses filmes memoráveis foi Chamas de verão (Mademoiselle). Minhas palavras para esse filme são três: puta que pariu. O orgasmo ao som de Brahms não é nada comparado ao que ela mostra em Chamas de verão. A discussão sobre a sexualidade feminina é elevada a um patamar extremo, com uma protagonista que condena a si mesma por sentir desejo sexual. Eu quero muito escrever sobre esse filme algum dia, porque ele não é tão conhecido, e merece que o mundo o descubra. O roteiro foi escrito por ninguém mais, ninguém menos do que Marguerite Duras, inspirado em uma história de Jean Genet. Eu o considero uma espécie de precursor de outro filme que discute a sexualidade feminina, A professora de piano, de Michael Haneke.

Chamas de verão (Mademoiselle), 1966.


Nem tudo é cinema. Em 1971, Jeanne assinou o manifesto das 373 vagabundas no qual declarava ter feito aborto ilegal. Ela e mais outras 372 mulheres francesas tomaram esse passo corajoso com o objetivo de legalizar o aborto na França. O texto do manifesto foi redigido por Simone de Beauvoir e começava da seguinte maneira:

Todo ano, um milhão de mulheres fazem aborto na França.
Elas o fazem em condições perigosas por causa da clandestinidade a qual estão condenadas, mesmo que essa operação, praticada sob controle médico, seja uma das mais simples.
Fazemos um minuto de silêncio por esses milhões de mulheres. Eu sou uma delas. Eu declaro que já abortei. Da mesma forma que reivindicamos o livre acesso aos meios anticoncepcionais, nós reivindicamos a liberdade de abortar

A repercussão do manifesto das vagabundas ajudou a não mais criminalizar o aborto, se fosse com até dez semanas de gestação, em 1974. Jeanne tinha uma consciência política aguçada, e todas suas escolhas no cinema são, de uma forma ou de outra, fruto dessa consciência. Ela sempre pendia para os papeis complexos, mostrando as diversas facetas do ser mulher.

De todas as parcerias de Jeanne, a minha favorita é a com Marguerite Duras. Elas eram muito amigas e dessa parceria nasceu um dos filmes mais fascinantes e intrigantes de sua carreira: Nathalie Granger. Antes de Nathalie, Jeanne estrelou Moderato Cantabile, trama inspirada no romance homônimo de Marguerite. Ninguém sabe ser tão Marguerite Duras no cinema quanto Jeanne Moreau. Aqui, ela desafia mais uma vez o establishment ao interpretar Anne, uma mulher que se envolve com um trabalhador, interpretado por Jean-Paul Belmondo. Jeanne também emprestou sua voz para a canção de India Song, um dos mais belos filmes dirigidos por Marguerite, e para a versão cinematográfica de O amante.

Por falar em voz, Jeanne também passeou pela música, criando aquilo que chamamos de "canção personagem". Ela mostrou que não é preciso de uma grande extensão para cantar, mas sim de sentimento. Música é sentimento, e disso, sinceramente, ela entendia muito bem. Em Chansons de Clarice, álbum de 1969, ela nos conta a história da mulher do título. Todas as canções se encaixam e são um retrato de Clarice, com seus medos e pensamentos. Em Aimer ela diz:

A cada um o seu amor e sua necessidade de amar
Talvez a minha necessidade seja um amor que não pode estar em um único corpo

Jeanne chante Jeanne (o álbum favorito desta que vos fala) tem várias canções compostas pela própria cantora. Nelas, percebemos a mulher multifacetada que Jeanne era. Em La célébrité, la publicité, ela critica a fama: mas que efeito [a publicidade e a fama] tem em você? Ela declara que adora ficar em casa, cortando legumes na cozinha, ao invés de se importar com o sucesso. Já em Oh, quelle histoire!, Jeanne resgata a imagem maliciosa com a qual ela tanto se irritava, embora lá no fundo talvez gostasse de cultivá-la.

Com Jeanne chante Jeanne, a atriz queria que as pessoas a vissem de uma forma diferente:

Ao escrever estas canções, eu pensei que estava mostrando um retrato muito inesperado de mim. Eu estava cheia da mulher que eu representava. Queria escapar à submissão de atriz. Eu trabalhei com diretores extraordinários, mas eu não era responsável por nada.

Um de seus últimos trabalhos no mundo da música foi o disco de poesias cantadas de Jean Genet, ao lado de Étienne Daho. Sua voz transforma-se na própria poesia e, mais uma vez, a canção personagem está de volta.



Ontem, uma rainha nos deixou. Não uma rainha qualquer, sentada em um trono, com uma coroa na cabeça. Muito pelo contrário, Jeanne Moreau foi uma rainha sem coroa e sem trono, porque seu reino era o mundo do cinema. Se ela amasse uma ideia, lutava por ela. Foi por isso que ela nos deu a honra de rodar um filme no Brasil nos anos 70, Joanna Francesa. Porque ela acreditou na ideia de Cacá Diegues e a financiou.

Moreau abriu as portas para personagens donas da própria sexualidade e do próprio corpo. Sofreu com as críticas de uma imprensa que a chamava de feia. Depois passou a ser adorada pelos algozes. Ela não foi apenas a musa da Nouvelle Vague, seria muito reduzi-la a isso. Ela nos mostrou que as mulheres dentro do cinema podiam ter um espaço muito além dos papeis de jovens inocentes. E o mais importante: você não apenas a sua aparência.

Descanse em paz, Jeanne. Você deixa um legado fantástico para nós.

Texto publicado originalmente em Cine Suffragette.


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