Leituras: A mulher calada

agosto 09, 2017



Sou a pior pessoa para falar sobre librinhos que vocês provavelmente conhecerão, mas como minha vida não é o suficientemente interessante para dar um post do BEDA, a gente vai falar sobre literatura mesmo.

Depois de passar muito nervoso com O conto da aia, um livro sobre o qual não me sinto nem apta para falar a respeito, decidi ler o último dos títulos que comprei na abençoada feirinha da USP: A mulher calada, de Janet Malcolm. Por que não resolvi ler esse livro antes? Não sei. Tinha tudo para ser o primeiro da minha lista, pois o vendedor da Companhia das Letras fez uma propaganda fabulosa sobre ele. No entanto, acredito na teoria de que cada leitura tem uma hora para acontecer e não era hora de eu ler A mulher calada.

A mulher calada do título é Sylvia Plath, poetisa que Janet utiliza para discutir a questão dos limites da biografia. Ao se suicidar de forma trágica, enfiando a cabeça dentro de um forno e ligando o gás, Sylvia selou um mito. Sua poesia e sua prosa, simbolizada por A redoma de vidro, tomaram outras proporções. É como se eles funcionassem como um aviso ao que aconteceria mais tarde, em 1963, na noite de inverno em que Plath decidiu terminar com sua vida. As pessoas passaram a olhar com curiosidade para ela, querendo saber o que havia, talvez, motivado essa atitude. 


E aí começaram a aparecer as biografias. Biografias de todos os tipos e cores, escritas por homens e mulheres. Livros que especulavam os motivos, as rusgas de Sylvia com o marido, Ted Hughes. Enquanto detentora do espólio de Sylvia Plath, Olwyn Hughes, irmã de Ted, tentava barrar ao máximo possível narrativas que pudessem pintar Ted como um marido abusivo, por exemplo. Ela impedia a reprodução dos diários de Sylvia Plath nessas biografias e mandava cartas desaforadas aos autores que ousavam mostrar um retrato nada agradável de seu maninho.

Sylvia Plath e Ted Hughes.

Janet Malcolm se concentra na biografia que desviou da lógica de retratar Ted Hughes enquanto um marido nojento: Bitter Fame, de Anne Stevenson. Ela nos conta que, quando Bitter Fame foi lançado, o livro foi mal recebido por se esquivar da versão da história que as pessoas desejavam ouvir, a de  que Ted Hughes era ruim e Sylvia Plath boa:

Quando Bitter Fame foi publicado, declarando que pretendia "dissipar o miasma póstumo da fantasia, rumores e política e mexericos macabros" que alimentava a "lenda perversa" de Sylvia Plath, não surpreende que o livro não tenha sido recebido de braços abertos. O mundo não gosta de dissipar as fantasias, os rumores, a política e os mexericos macabros a que se apega (...)

Outro motivo para o livro de Anne ter sido massacrado é sua postura de praticamente pisar em ovos. Ela não expunha os barracos estilo Casos de Família que as pessoas esperavam. Ela parecia levar muito a sério o que fazia. Além disso, Bitter Fame foi escrito a quatro mãos, pois Olwyn a ajudou durante o processo. Janet conta que a irmã de Ted deixou a autora maluca, porque queria mexer em absolutamente tudo o que ela escrevia.

Lentamente, a questão discutida no livro vai ficando clara, revelando que Sylvia Plath é um entre outros tantos casos complicados da questão das biografias. O que Janet quer nos mostrar é como, no fundo, uma biografia é uma versão de uma pessoa. Isso quer dizer que não há verdade absoluta, você não pode afirmar que o fulano era assim ou assado. Ainda mais quando esse fulano está morto, como é o caso de Sylvia. Na minha humilde opinião, o que existem são versões de uma pessoa, as versões com as quais entramos em contato durante a vida. Várias biografias de Plath foram escritas tendo em mente essas versões.

Quando penso nessa situação de Sylvia, é claro que lembro de Mamãezinha Querida, o relato escrito por Christina Crawford, a filha de Joan Crawford. O livro foi escrito após a morte de Joan, e todos tomaram o que está lá como a verdade absoluta. Ninguém sequer pensou em duvidar do que Christina havia escrito. No entanto, o que pode estar em Mamãezinha Querida é a versão dos fatos, como Christina via as coisas. Será que foi mesmo daquele jeito? Parece, nestas horas, que estou discutindo historiografia em sala de aula. A conclusão que chego em relação à essa questão é apenas nenhuma.

Nem quando a biografia é escrita pelo próprio biografado podemos esperar verdade. Na biografia escrita pela própria Joan Crawford, ela mente o ano de nascimento. Se a mulher mente o ano em que nasceu, o que podemos esperar do resto? Ela nos apresenta a versão de si que devemos conhecer, a da mulher batalhadora, educada e polida. 

Confesso que terminei A mulher calada com muitas perguntas e algumas discordâncias (para mim Ted Hughes é um cuzão, aceitem). A maior questão de todas é: se Ted Hughes não tivesse sumido com inúmeras entradas de diário de Sylvia Plath, teria sido diferente? Provavelmente, sim. Essa história de que ele sumiu para poupar os filhos não cola. Para mim, ele sumiu porque queria preservar o pouco de imagem que havia lhe restado. 

Mas não dá para saber. O que dá para saber, com toda a certeza, era que Sylvia Plath foi uma poetisa de primeira linha. Fiquem com esta porrada de poesia que é Mirror, meu poema favorito dela:

Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo imediatamente
Do jeito que for, desembaçado de amor ou aversão.
Não sou cruel, apenas  verdadeiro -
O olho de um pequeno deus, de quatro cantos.
Na maior parte do tempo medito sobre a parede em frente.
Ela é rosa, pontilhada. Já olhei para ela tanto tempo,
Eu acho que ela é parte do meu coração. Mas ela oscila.
Rostos e escuridão nos separam toda hora.

Agora sou um lago. Uma mulher se dobra sobre mim,
Buscando na minha superfície o que ela realmente é.
Então ela se vira para aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e as reflito fielmente.
Ela me recompensa com lágrimas e um agitar das mãos.
Sou importante para ela. Ela vem e vai.
A cada manhã é o seu rosto que substitui a escuridão.
Em mim ela afogou uma menina, e em mim uma velha
Se ergue em direção a ela dia após dia, como um peixe terrível.

(Traduzido por André Cardoso)

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